Tibete


Não sou jornalista. Acrescento sempre palavras ao que vejo. E guardo outras, num recanto do meu egoísmo. Não acreditem no que escrevo, pensem apenas. Porque pode ser verdade.

Quem é que nunca sentiu a surpresa de uma notícia? Ou o susto de uma bomba de Carnaval? Ou encontrou um conhecido num lugar improvável? Ou se queimou, se arrependeu, pisou um buraco? Momentos… momentos… momentos… em que não temos tempo para controlar a parte de dentro do corpo. Era dia 10 de Março. E o maior desses momentos aconteceu. Descíamos a rua do Mosteiro de Drepung, com dezenas de monges, em debates e amizades criadas pelo puro acaso durante todo esse dia. Um falava sobre a importância da data, outro de liberdade, da vida, de estarem a um passo de ter voz. Apenas voz. Nem cabíamos dentro da pele. Os únicos diferentes do meio, mas no meio. Entre sorrisos vermelhos e vestidos de confiança, faláv… Sinto um braço a puxar-me, a rua bloqueada, e tanta gente. Polícias de choque, militares, camiões, um barulho confuso a impedir o caminho para Lassa. E um braço. A insistir, a puxar-me. Num segundo levou-nos para o outro lado da rua. Vi que era um polícia. Não podem estar aqui. Continuem a andar. Do outro lado os monges, num silêncio cada vez mais afastado. Mais carros, e homens, e carros, e homens. Sem farda. Fecharam as lojas, fecharam as casas. Voltaram. Tiraram as pessoas das casas. Continuem a andar. Ninguém olhava para trás. O medo envolvia os corpos. O que se passa? Responderam-nos: um fogo; exercícios… duas vozes fardadas. Queríamos voltar para trás. Já não conseguíamos ver as caras, apenas roupas vermelhas abafadas por uma força violenta. Armada.
Foi o início. Sabemos que muitos desses monges morreram no final desse dia.
Após quilómetros a andar por estradas de terra não batida, a tentar inventar ruelas que nos levassem a testemunhar a prepotência militar e policial sobre pessoas desarmadas, descobrimos o pior. A nossa impotência. O bloqueio estendia-se ao inimaginável, até nenhum som vindo do Mosteiro se conseguir ouvir. Máquinas fotográficas inspeccionadas ao milímetro, questionados ao milímetro, desde esse instante, controlados ao milímetro. Telefones, internet, conversas, gestos e decisões. Tínhamos sido as únicas testemunhas do início, da violência utilizada sem justificações de defesa, da experiência que demonstraram, da rapidez com que limparam o local de olhos e provas, da postura silenciosa daqueles monges. Os sete dias até à chegada ao Nepal, por terra, a dormir em pequenas aldeias no meio dos Himalaias, ficaram marcados pela tentativa de criar medo. Presos nos quartos, revistados, identificação constantemente exigida na estrada e após a única consulta do e-mail, as horas que passámos na fronteira… Mas não foi o que mais me assustou. Foi a certeza do que vi: o controlo do povo chinês e tibetano levado ao extremo por violência e impunidade; a quantidade sem fim de agentes à paisana ou pessoas que a troco de uns sapatos novos falam do que se passa na casa ao lado; o medo; a propaganda; a confissão assustada de que a falta de direitos humanos ultrapassa o não ter pão. Aqui morre-se por ter opinião.

Tudo o resto que vivi no Tibete ultrapassa um texto legível… por enquanto. Mas tenho voz. E não me esqueço.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Polinésia Francesa (Tahiti, Moorea, Huahine e Raiatea)


Era uma vez. Uma imagem.
De uma família a receber-nos no Tahiti com colares de silêncio e flores brancas. Tínhamos acabado de chegar a um lugar onde tudo é diferente. Onde se apaga o resto do mundo e a terra nos foge dos pés. Onde tudo se passa dentro do peito.

Era uma vez. Um sopro.
De verde. De azul. De acaso. A cada passo quase um abismo.
Numa primeira volta à ilha uma tontura de imensidão impede-nos de acreditar. Depois, de mansinho, conseguimos levantar os olhos. São as árvores que começam. Pesadas, debruçam-se para nos oferecerem fruta. Quase sentimos o alívio. Num instante seguinte, imperceptível, o mar inunda-nos com corais e transparência. E não deixamos de ser nós. Só passamos a ser mais terra.

Era uma vez. Um espanto.
Numa ilha tão longe que pensamos que não existe. Em Huahine. Descobrimos que se pode respirar enquanto se vive a novidade. Um casal com cinco filhos mostrou-nos isso quando nos recebeu dentro da sua humanidade. Não sei o que aprendemos. Que os mortos se enterram na areia do jardim? Que se pode viver ao ritmo do sol? Que há árvores que nos abraçam? Não sei. Talvez não seja preciso aprender nada.

Era uma vez. Uma dança. Uma montanha. Uma ilha sem ninguém.
Em que os braços falam da chuva e da memória com uma harmonia que não cabe nas mãos. Em que os pés sobem com surpresa. Onde a recordação é demasiado grande para se guardar.

Era uma vez. Um início.
Quando nos despedimos e recebemos de cada pessoa um colar de búzios.
Não significam o nosso regresso. Emprestam a voz ao desejo que regressemos. Acrescentam-nos.

Era uma vez uma crónica diferente. Sem linhas de invenção. Porque sim. E porque há momentos que nos transformam a vida. Simples instantes ou dias inteiros. Como estes.

Texto: Clara Faria Piçarra

A Norte. Tailândia.


Desfaço as minhas guerras com as mãos. Com a fragilidade de um pensamento, separo cada fio como se fosse a minha vida. Tenho cinco anos e estou sozinha. Tenho apenas nada e o mundo pela frente. Sem rumo e numa terra vazia, estou entre a tempestade. De pessoas que matam sem duvidar. Separo esse fio e cresço. Fujo de mim, do meu país. Deixo as memórias sem fronteira e o espaço sem ilusão. Tenho quinze anos e estou sozinha. Não tenho vozes que me dêem a mão. Separo o calor. O medo. E as minhas coisas simples. Deixo-os passar nos meus dedos com a suavidade de cada importância. E cresço. Para um lugar que me torne em futuro, em vontade. Separo o último fio. Estou aqui. Sozinha. E sem idade.
As "Long Neck" são refugiadas Birmanesas numa Tailândia que as aceita de braços fechados. A cada gesto cresce-nos o dilema de uma vida. Se não as visitarmos, se não olharmos para os seus anéis de tradição fechada, são obrigadas a voltar ao mundo dos medos mais básicos. Regressam ao que fugiram, às suas guerras, ao país que as matou. Mas, quando as conhecemos, há outro lado. Sem desculpa, sem palavra: não é o retrato que aparece em cada fotografia que lhes tiramos. É a alma a diluir-se sem esperança. Com a fragilidade de um pensamento, pego nuns fios. E desfaço as minhas guerras.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

África do Sul

Imagino uma nuvem. No meio dos círculos de medo e ódio, loucura e amplitude deste país, aparece na forma de um momento. Dou-lhe um nome. Humanidade.
Têm um ar duro, são quatro ou cinco ou mais homens de um negro aflito a sair-lhes de cada poro. Enfrentam a máquina fotográfica com desprezo de bandido. As mãos são armas e dedos desiludidos. Mas de pose firme para a incerta posteridade. Até que lhes mostro o resultado. Só observo. E tremo. Com medo. Um a um, pegam no seu reflexo. É esse o momento que retenho. De uma nuvem a sair-lhes pelos dentes. Feliz. A violência esquecida por um instante de verdade. E da maior humanidade.
Outra nuvem: no meio de um caminho duro, entre leões, vida e a terra maior do mundo, uma cassete velha canta, em Xhosa, língua de estalos e surpresas. "Com a voz canto a minha África, a minha liberdade".
- Esta é a única frase de toda a canção. – diz o Sam, um homem de sonhos que nos guia por aquele castanho forte. - Não gosto de músicas cheias de letras. As frases verdadeiras precisam de espaço. Imagino mais nuvens. Esmagadas por medos, ódios, loucuras e amplitudes deste país. Tão negro e branco e inicial. O maior país do mundo. Espero que existam.
Escrevo em casa. Em círculos. Sem saber se cheguei ontem ou não cheguei ainda. Tenho este sul de África na garganta, em pedaços vivos. Como uma música de letra verdadeira e que precisa de espaço. Uma nuvem.
Texto: Clara Faria Piçarra

Laos


Há.
Tanto.
Para.
Contar.
Escolho pequenos pedaços. Histórias que já existem e só esperam transcrição. Em cima da mesa estão elefantes e um rio; a selva e uma aldeia castanha; monges descalços e uma terra sem luz. Mas está também outro pedacinho. Muito pequeno. Quase um segredo. É esse que escolho.
Agarra o filho pela mão e corre. Ignora o som que cai do céu. Concentra-se no caminho. A floresta, as árvores, as folhas abrem-se. Desviam-se num sacrifício quase humano. Para o deixar passar. A correr. Com o filho pela mão. Sabe que está perto. Cheira a segurança. Acelera o passo para avançar o tempo… e chega. A escuridão cega-o. São as mãos que o orientam. Um frio rochoso atravessa-lhe os dedos, os braços, congela o medo durante segundos. Pressente que não estão sós. Senta-se. Espera. É no instante que alguém acende um fogo que desaba. A gruta é gigantesca, gelada, feita de sombras, de silêncios… e de olhos. Centenas. Assustados, velhos, cansados. Reconhece cada um. São os olhos da sua aldeia.
Pousa o cigarro na mesa e olha para o final da rua de terra. Vê o seu filho a agarrar a mão do filho. Caminham devagar, sem pressa, sem fuga. Não consegue evitar a recordação. Do dia. Daquele dia. Porque foi o primeiro. Nas vezes seguintes, quando fugiam do céu que caía, já sabia para onde ir, já conhecia o sabor dos insectos, das aranhas, da fome. Já sabia que seriam menos os olhos que veria. Sabia. Hoje o perigo vem do chão. Gostava de saber voar.

(o Laos foi o País mais bombardeado do mundo. Prevêem-se cem anos para que se torne seguro. Foi o lugar mais puro onde já estive)

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Buenos Aires


Só tem um medo: não conseguir acordar. Nunca dorme mais de duas horas e bem encostadas à força do dia para que se sinta sempre a amanhecer.
Na noite anterior tocou como nunca. Saía-lhe música por cada poro. Foi canção, vida, poema.
(por que chorava ela?)
Olha para o espelho. Passa a mão pela barba, como se a agressividade dos pêlos lhe garantisse estar acordado. Não consegue deixar de sentir culpa sempre que tem noites assim. Sabe que a cada movimento de braços rouba um pedaço de alma ao público. Agarram-se às cadeiras, prendem-se ao chão, recordam, sorriem.
(por que chorava ela?)
Mas não consegue parar. Nesses momentos toda a cidade se resume ao seu corpo. Luz, arte, movimento, literatura. Toca a decadência. Toca o desejo. Toca para não largar a noite.
Enche de gente cada intervalo seu.
(por que chorava ela?)
Abre a porta de casa. E recomeça.


As luzes acendem-se no preciso instante em que a música acontece.
Uma dor aguda invade-me como se me roubassem lentamente pedaços de passado.
(por que choro?)
A minha alma salta para o palco. Sai-me por cada poro. Transformo-me em canção, vida, poema. Sinto a cidade como se sempre tivesse sido minha. Uma dança sofrida de arte, luz, movimento, literatura.
(por que choro?)
Sou apenas aquele momento. Nenhum gesto é exagero. Nenhum som ultrapassa a música. Nada acontece fora de mim.
Choro por saber que nessa noite amanheci.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Argentina

(Cozinhamos ao jantar. Pomos a roupa a lavar regularmente. Vamos ao supermercado comprar pasta de dentes. Não queremos ver tudo num só dia… Começámos a viajar. Já não me sinto de férias. Pela primeira vez tenho consciência do que poderá ser um ano a viver assim, em deslocação. E se a deslocação é um lugar eu não queria estar noutro)

Mas… Argentina. Que era o que eu vinha aqui fazer!
Buenos Aires: sou eu. Respirei a cidade com essa surpresa, de me identificar em cada canto. Passo de mansinho para Iguaçu, para não ceder a tentações auto-biográficas.
Cataratas de Iguaçu: não cabem num rectângulo. Quando inventarem uma fotografia sem arestas talvez se consiga transmitir aquela imagem. Qualquer viagem (mesmo de 20 horas seguidas) é pequena comparada com aquela imensidão. O som. O som. Como se nos engolisse.
PATAGÓNIA:
Sobre a Patagónia lá terei que escrever um livro. (risos)
A primeira fotografia foi à nossa chegada, Península de Valdés. As baleias estavam a 15m da praia. Foi a altura em que mais temi por uma acção do Miguel. Observava a sua indecisão: entro ou não entro no mar? Entrou. Felizmente a água congelava e foi só até aos joelhos, porque aquelas meninas mediam entre 15 a 17 metros.
Quem me conhece sabe que só gosto de gatos e de sete cães (Maria, Fumaça, Arpão, Gaspar, Nata, Jose e Ulisses). Gosto mais ou menos de todos os outros animais e odeio de morte alguns… Até às Galápagos. Desarma qualquer um estar tão perto de animais impensáveis. Imaginava que só em África iria sentir algo igual… Até à Península de Valdés. Nada se compara à força de um salto de uma Baleia Austral, ao seu cantar, à suavidade com que brincam com o barco onde as pessoas (nós) se estendessem o braço lhes podiam tocar. Dificilmente vamos sentir algo parecido… E nem quero pensar que possa vir a dizer: Até à Austrália! Acho que os animaizinhos que por lá vivem não se resumem a cangurus.

A cidade seguinte foi só de passagem. Dormimos uma noite em Rio Gallegos e sobrevivemos. É tão linda como Alfragide. Com uma particularidade: foi o primeiro (desconfio que único) sítio em que agradecemos o peso da mochila. Aliás, podemos mesmo dizer que fomos os primeiros portugueses a serem salvos pela própria mochila. Não sabia que era possível o vento atingir aquela velocidade. Estivemos muito perto de atingir um sonho: voar. Quando conseguimos arrastar-nos até à paragem de um autocarro perguntámos:
- Esta tempestade vai continuar por muitos dias?
- Tempestade?
- Sim… mas… este vento costuma estar assim?
- Não. Estamos na Primavera. Costuma ser muito pior.

Comecei a perceber a Patagónia.

Todos os dias sinto que tudo o que temos vivido é demasiado para dividir apenas por dois. Gostávamos de actualizar o blogue mais regularmente. Não temos conseguido. Deixamos as Baleias falarem um bocadinho por nós e vamos viver mais Patagónia. Teremos muito para dizer.
Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

La Mitad Del Mundo, Equador


Tinha acabado de chegar. Foi tirando com calma tudo o que guardara no saco. Um chapéu de abas largas, um guarda-chuva, um casaco comprido, um lenço, outro lenço e outro e outro. E sentou-se, como se esperasse. Passaram uns minutos. Com uma suavidade desenquadrada da paisagem vestiu o casaco, o chapéu, espalhou os lenços pelo corpo, abriu o guarda-chuva. E começou a dançar.

Pousei o café e olhei com mais atenção. Movimentos surdos diluíam-se no chão. Como os seus olhos. Não dançava para ninguém, apenas para si.
Vivo numa das cidades mais altas do mundo. Mas não tenho medo de cair. Uma vez por mês subo a Cotopaxi para não me esquecer. Deste ar que respiro, deste azul tão fundo, de que vivo na metade do mundo.Não sei se cantava.
E foi de repente. Olhou para mim:
- Estranhas-me?
Nada. As palavras adormeciam-me na garganta.
- Não tenhas medo de mim. Só não quero ser ausente de sombra.
Disse-me.
Ausente… de sombra. Ausente… de sombra. Sabia, mas não reparara. Ao meio-dia Quito transforma-se na cidade dos homens sem sombra.
Menos a Isabela. Uma menina de quinze anos que se aumenta, que inventa pedaços de corpo apenas porque nunca quer guardar todo o sol dentro de si.

(Antes de começar esta viagem tinha uma certeza: queria escrever histórias do mundo. Sem necessidades descritivas ou de relato diário de experiência pessoal. Apenas contar uma história de alguém com outra perspectiva do que pensamos conhecer, que não fosse possível ler num guia, na Internet ou num livro de viagens. E é tão simples, não tenho que as procurar. Basta-me olhar e querer ver. O que me atraiu em Quito não foi ser Património Mundial da Humanidade, ou ser uma cidade rodeada de vulcões castanhos e azuis e brancos, ou ter um centro histórico tão bem conservado, tão colonial, tão esmagador, com tão pouco oxigénio. Foi saber o que pensa alguém que vive sem sombra)

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Pura descrição, Equador


Hoje não escrevo, descrevo.
Às vezes canso-me. É normal, estou a viajar, nunca sei onde acordo no dia seguinte, o que vou comer, ver, absorver… E hoje estou cansada. Por isso não me vou isolar a escrever. Deixo os olhos em alvo e os pés longe do chão e venho para este cafezinho, a um canto de Quito, pura e simplesmente, descrever.

Relação Equador- Perú
- …mas és peruano? – pergunta o Miguel ao taxista pensando ter cometido uma gafe ao dizer que no Peru todos os carros são táxis.
- podes chamar-me gay, podes chamar-me ladrão, mas peruano … nunca!
(ficámos a saber)

Sem dinheiro nas Galápagos
Saber que se tem de pagar 100 dólares para entrar nas Galápagos é uma coisa, tê-los é outra completamente diferente.
- Podemos levantar dinheiro?
- Estamos numa base militar, não há multibancos.
- E podemos trocar Euros?
- Estamos numa base militar, não há casas de câmbio.
- E podemos pagar em Euros?
- Estamos numa base mi… Não.
Salvou-nos um Biólogo Galapaguenho que, achando pouco, ainda nos deu boleia e levou para sua casa.
(a vida é para os distraídos)

À deriva no Pacífico
Partiam de Santa Cruz duas embarcações para a Ilha Isabela às duas da tarde.
- As vossas mochilas são muito pesadas! Isto é uma lancha não um navio! – disse o único equatoriano antipático à face da terra.
- Está bem, então não vamos consigo. – o Miguel.
- Vá lá, pronto… entrem lá.
- Não, não queremos ir consigo. – a voz do vomidrine (moi meme)
E fomos para a outra lancha. Duas horas e meia depois pisávamos terra firme. A embarcação do senhor “simpático” perdeu o motor a meio do caminho. À deriva no Pacífico, sem luz, sem GPS, e com muitos vómitos e um grande susto depois lá chegaram já a manhã nascia.
(animais de sorte)

Lei seca
Chegámos das Galápagos. Sexta-feira à noite, a dormir no centro… perfeito para voltar a testar o nosso relacionamento com pessoas. Por que estão as ruas desertas? Por que não está ninguém nos bares? Por que se recusam a servir-nos vinho e cerveja?
- As eleições são domingo. Até segunda ao meio-dia não podemos vender nem consumir álcool.
- Mas nós não vamos votar!
- Se descobrirem que vos vendi vou preso quinze dias.
É obrigatório exercer um direito, no Equador. Quem não votar, além de ser preso quinze dias, não pode sair do país, inscrever-se na universidade, pedir um empréstimo… fica sem documentos. Para sempre. Até que uma futura lei os liberte.
(um tchim-tchim a Portugal)

Boletim de voto
Aaaaaaaaaaaaaaah… Claro que não se pode beber alcool. Claro que é obrigatório votar. Reparem bem na fotografia. É a nossa amiga Soledad com o seu boletim de voto! Frente e verso, meus amigos! Nada que demore mais de quinze, vinte minutinhos, se a lição estiver bem estudada.
(não, obrigada)

Não fomos à Selva, não subimos o Cotopaxi, não vimos os Lagos.
Estivemos no Paraíso da Evolução Darwiniana, conhecemos a respiração de Quito, a Soledad abriu-nos a porta de casa. Mostrou-nos como se vive no meio do mundo. (somos todos tão parecidos)
Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Indonésia – Bali e Sumatra (Pulau Nias)


Há alturas em que ficamos quase sem nada. Não porque perdemos, ou desistimos, ou deixámos de agarrar. Ficamos quase sem nada. Porque vimos. Olho para longe e sinto a onda como se fosse minha. Nos pés. No peito. Na incerteza. Sou água ou sol? Sou vento, azul, quase transparente. Se pudesse chorava. Ou gritava. Ou sorria. Se pudesse. Mas deixei de ser formado por pedaços. Transformei-me em tudo. Desço a onda, sinto, faço parte. Não há nada fora de mim. As vozes são minhas, as cores, o sal, o momento curvo de força pura. Sei que não sou eu. Eu agarro apenas um sonho. Com as duas mãos, debaixo do braço… como se deve agarrar um sonho: com a certeza de que um dia vai ser inteiro.
Há alturas em que ficamos quase sem nada. Não porque perdemos, ou desistimos, ou deixámos de agarrar. Ficamos quase sem nada. Porque vimos. O caminho é duro. Não percebo porquê. O verde prolonga-se numa floresta cerrada que só desiste no mar. A estrada vence com calma cada curva. Recebem-nos com fruta e vontade. Por que sinto ser tão difícil? É quando estamos sentados num chão que serve conversa fácil que olho pela primeira vez. Não para o verde, não para o mar… para o vazio. Todas as casas estão vazias. Não há mesas, ou cadeiras, ou quadros. Há apenas vazio fechado entre paredes e tectos. Nias foi destruída por uma onda gigante que vimos na televisão. Nos anos seguintes dois tremores de terra resumiram a destruição. Lentamente, as casas vão crescendo como as pessoas que ali vivem. Num vazio envolvido por pele fina. Mas que guarda uma esperança que não sabia possível.

Os desequilíbrios não são a perda da vertical. São os espaços vazios que se criam quando não há justiça. Temos culpa. Porque sabemos que existem.

Texto: Clara Faria Piçarra

Sa Pa, Vietname


Ando devagar. Tão devagar. Como se fosse uma forma de pensar. Vou ao passo do amanhecer, encostada ao nevoeiro. Não sei se piso terra ou pedaços de memória, se invento ou faço parte da história. Estou a viajar há oito meses.
Podia escrever o que sente a menina de uma tribo da montanha, ao carregar o filho às costas, enquanto trabalha nos arrozais e come e se desloca. Porque estamos as duas de mão dada. A andar. Tão devagar. Como se fôssemos uma forma de pensar. Mas. Caladas, não somos apenas aquele momento. Os verdes da montanha não são apenas árvores. Têm todo o mundo dentro. A sombra do Equador, o cheiro de um riso íntimo cubano, os abraços de despedida. Têm o fundo do mar e o silêncio de pedra de uma ilha remota. Não são apenas árvores. São um dia de trabalho duro e o desejo de construir uma casa. São os passos de todos os dias para vender panos e imaginação. São sonhos. Andamos. Devagar. Encostadas ao nevoeiro.
Podia escrever o que sente alguém que, por ser tão velho, se esqueceu da ordem dos gestos. Porque está a passar por mim. De mão fechada e a debruçar-se para uma árvore. Vejo uma lagarta a sair devagar para a liberdade de uma folha. Tão devagar. Como se fosse uma forma de pensar. Espera, de cócoras, de queixo a descansar nos joelhos. Torna a pegar na lagarta e a passar por mim. De sorriso aberto e movimento curvo. Mas. Não somos apenas aquele momento. Os socalcos da montanha não são apenas de arroz. Têm todo o mundo dentro. O céu da Patagónia, uma aldeia entre fiordes, a gargalhada franca de uma vendedora de livros. Não são apenas arroz. São uma vida inteira de trabalho na terra e desejo de conhecer o mar. São os passos de todos os dias para inverter a natureza. São sonhos.
Estou a viajar há oito meses. Podia escrever o que sinto por acordar todos os dias num lugar diferente, sem saber o que me espera ou o que encontro. Mas. Não sou apenas este momento. Os meus dias não são apenas deslocação. Tenho todo o mundo dentro.
Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Rapa Nui (Ilha da Páscoa)


Corta o peixe em fatias bem finas, afoga-o em limão e alho, acrescenta gengibre, ervas aromáticas e não espera. Pega num pedaço e leva-o à boca. Eleva-se para essa mesma manhã. Revive aquele ínfimo instante em que pressente que o peixe vai morder o anzol. Cada músculo do seu corpo a preparar-se para a luta do animal. O mar. O tempo. O som. Antecedem o momento.
Mastiga o pedaço cru e olha para além da janela suja. O mar ao longe transforma-o no próprio peixe. Sente a dor, a força, o fundo. Mergulha para o fundo. Para o fundo de si próprio, para o outro lado da sobrevivência. Chegou ao mercado de Hanga Roa orgulhoso, com o peso do peixe nas duas mãos. Ambos sorriam. No outro prato da balança vinte bananas, um saco grande de legumes e uma grade de cervejas equilibram a semana.
Sai de casa. O prato abandonado em cima da mesa desconhece a história que serviu. Vazio. Como as ruas àquela hora da tarde. O cavalo espera-o com a mesma serenidade dos que sabem o caminho. Correm juntos, sem adereços ou separação, numa liberdade castanha que os leva até ao cimo do vulcão. Protege o seu Moai num abraço de pedra sólida. Não sente que adormece. Não sabe que sonha.
- Até amanhã - ouve.
E tem a certeza que haverá um dia seguinte.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Grande Barreira de Coral e Pequim



Concentro-me no espaço ínfimo entre mundos e vivo esse momento. Viajar tem destas alturas. Em que estamos apenas no meio.
Abro os olhos sem sono e mergulho no mar de coral. Ouço as cores, os peixes, a transparência. Não sei o que dizem. Entrei num mundo de outras histórias. A razão, as palavras, o poder do argumento ficaram no barco. Aqui entramos despidos de nós. Ouve-se com a pele, trocam-se os sentidos. É um peixe papagaio que me mostra o caminho. Espirais amarelas, azuis, negras, atravessam-me o horizonte. São ritmos. E hábitos. E texturas. Enormes e invisíveis, que participam ou se disfarçam, que aparecem do fundo ou do improvável. Vidas que me espantam a cada gesto de diferença. E eu, sem peso, sem respiração, sou mais do que um silêncio apesar de sem voz.

Abro os olhos sem sono e dou um passo para a rua. Oiço o vermelho, as vozes, o fumo. Não sei o que dizem. Entro num mundo de outras histórias. A opinião, as palavras, o poder do meu querer ficaram no quarto. Aqui entramos despidos de argumentos. Um casal oferece ao filho um papagaio de papel, uma explosão de cores presas à mão por um fio. Sigo-o por um instinto. E estou na multidão. De hábitos. E ritmos. E texturas. Tudo está a acontecer. Vende-se o puro e o improvável, com gritos ou no disfarce. Jogos, comida e meias juntam-se aos cantos de um qualquer fundo. A cada passo uma tradição, uma vida que se junta a outro alguém. Do nada, um fogo-de-artifício espanta os gestos de tanta diferença. E eu, com o peso dos cheiros e sem respiração, sou mais um silêncio que não precisa de voz.
Viajar tem destas alturas. Em que não há mundos que nos separem.
Texto: Clara Faria Piçarra

De barco pelos Fiordes Patagónicos, Puerto Eden, Chile

Entrou na sala e acordou o meu preconceito. Imaginei-a a rir em festas, quando afasta o cabelo; a passear em lojas de roupa, quando caminha por entre as mesas; a fumar cigarrilhas, quando procura algo na mala; a sentar-se num café de luxo
- Posso? -, quando se senta à minha mesa. Estranho. Nem a pensava em espanhol.
- Gosto de andar de barco.
Imagino…
- Para comer fruta.
Paro.
E é já sentada no seu coração que conversamos até amanhecer. Descreve-me os cheiros, o tempo, a vida de Puerto Eden com histórias de índios e lendas antigas; como gosta de acordar antes do tempo para ouvir os próprios pés, denunciados por estalos de madeira a cada passo arrastado.
- É nesse momento que acordo dos sonhos – diz-me.
Continua a mergulhar todos os dias para apanhar marisco, como a avó da sua avó, nua para nunca ficar doente. Come peixe, ovos e algas. Leva o filho à escola de canoa e regressa pelo caminho mais longo. Porque nesta aldeia não existe o hoje nem a palavra solidão. Cada dia tem outro dentro, uma pessoa é todas as outras.

Chegamos às seis da manhã. Despedimo-nos. Confessa-me que gostou de mim porque tenho riscos a prolongarem-me os olhos. O seu abraço cheira a madeira. Eu cheiro a madeira. Agarra os sacos com uma mão para me dizer adeus, levam fruta e pedaços soltos da minha admiração. Enquanto o seu barco se afasta imagino. Mas agora com mais verdade.

(Só se chega a Puerto Eden de barco. Isolada por glaciares, montanhas e ventos que gelam, fica a dois dias de uma das cidades mais a sul do mundo, Puerto Natales. Só três dias depois de lá sairmos tornámos a ver uma aldeia)

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

O final do Chile

Há fascínios que não nos largam facilmente. É sempre doloroso sair do Chile. Sei que regressarei, sei que não me esqueço. Talvez sejam as pessoas. Ou o deserto. Ou a Patagónia. Talvez seja o único país onde posso andar sem me perder. Os Andes dão-me a tranquilidade do caminho.

Texto: Clara Faria Piçarra

China


Canto. Som. Vermelho.
Os dias que vivemos na China ultrapassam o tamanho das palavras. Não há recantos descobertos dentro do meu ser que abranjam o tamanho de uma descrição. Devolvo-me às palavras soltas, ao abrir e fechar de olhos. Como um filme de imagens recortadas ao acaso, sem ordem, sem preparação. Cru. Só com a força dos pedaços soltos que acontecem.
Dragão. Fogo. Luz.
No meio de uma multidão que não nos esmagava. A viver a experiencia do lado contrário. Milhares de máquinas fotográficas paradas no espanto. Porque éramos nós a diferença. Queriam guardar-nos num retrato. O Dragão dançava o conhecido, a música e a festa cantavam felicidades repetidas. Nós. Nós tínhamos pêlos e olhos redondos, éramos altos como saídos de um filme. Abraços e sorrisos envolviam-nos com cuidado para não nos transformarmos num nada. Uma espiral de emoções apagava a necessidade de falarmos a mesma lingua. Éramos apenas aquele momento diluído de surpresa.
Toque. Cheiro. Passagem.
Pelo meio de ruas cobertas de pessoas, passos e fumo. A noção da individualidade perde-se no íntimo de cada um. Não há espaço livre, não há um cheiro conhecido, não há um sinal que os nossos olhos reconheçam. Deixamo-nos seguir pelo meio. Uma discussão sobe o tom de um canto, imaginamos facas e sangue, choros e corpos deitados ao chão. Esperamos o pior… Despedem-se com gargalhadas curvas e barrigas cheias de riso. Não temos tempo para nos sentir perdidos. No instante em que julgávamos a nossa interpretação alguém nos dava algo para a mão. Comida ou objecto? Experimentamos ou guardamos no bolso? À nossa frente um homem mínimo esperava a acção. Comemos. O sabor doce do desconhecido junta-se ao sorriso do vendedor. O que seria?
Medo. Curiosidade. Voz.
Numa estação de comboios onde as pessoas esperam por um dia que não sabem se será o seguinte. Juntas, apagadas pelo frio e por uma solidão profunda que se prolonga até aos nossos olhos sem uma palavra. Transformam as nossas cores num cinzento-escuro que nos atravessa o corpo e nos corta pedaços. À medida que passamos ficam espalhados pelo chão. O mesmo onde se sentam e dormem e esperam. Entrámos no comboio vazios de nós.
- O que é isso? – um estudante do quarto ano da Universidade, companheiro da longa viagem.
- Um saco-cama.
- Estou confuso… para que serve?
Como se explica o conforto, a suavidade?
Caos. E novidade sem fim.
Atravessar uma estrada, entrar num autocarro, perguntar onde estamos, saber o que comemos. Gestos simples são elevados à incompreensão. E nós, caídos num mundo novo e sem preparação, descobrimos vozes que estão para além da palavra. Aprendemos uma nova linguagem. A da existência.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Cambodja


Hoje caem-me as palavras das mãos. Sem que repare, espalham-se no meu colo. Quase com som. Quase com peso. Palavras.
(e eu sem bolsos)
Verde? Guerra? Ferida? O que querem dizer? Vou escrevendo com atenção para não as perder. Lembro-me de uma memória: “Quando chegar ao Cambodja quero saber o que pensa quem vive ao lado de uma Maravilha do Mundo”. Maravilha. Do. Mundo. Três palavras que caem para o chão.
(e eu sem bolsos)
Concentro-me. No dia que cheguei ao Cambodja perdi o medo de aqui chegar. Era assim que queria começar. (Fantasmas. Campos. Puro.). Mesmo guardadas entre parênteses interrompem o rumo da história. Porquê? Talvez por não ser uma história simples.

Era de manhã cedo e o ar já não se respirava. Tínhamos acabado de chegar ao museu: a antiga prisão do regime Pol Pot. Estávamos numa terra ferida de morte. Sentia-se o mundo a mudar de cor, a desfazer-se em contornos. Não há livro que nos prepare para pisar a História. Mas há pessoas. Na noite anterior, sentados à porta da rua, a conversa tinha-se prolongado sem esforço. Receberam-nos com o calor dos gestos simples. Os únicos capazes de diluir os medos. Era nisso que pensava. As ossadas que via espalhadas no chão combatiam-se com a recordação da gargalhada fácil da vendedora de livros; o terror das torturas com o olhar castanho do remador do lago; a humilhação, a violação, o silêncio de milhões com o sorriso dos velhos que passavam. É muito difícil matar um povo.
Foi assim que perdi o medo de cá chegar. E pude continuar. Pelos campos inundados de verde, pelas casas sobre estacas de madeira, pela facilidade do improviso, pelos rostos profundos de segredos íntimos. Até chegar à memória inicial. O que sente alguém por viver ao lado de uma Maravilha do Mundo? Sinto a sombra única de Angkor recortada no Lago. Sonhos? Conhecer outro lugar. Outro. Lugar. Vejo as palavras a caírem-me do colo. Quase com som. Quase com peso. Não conhece outro lugar. Apenas aqueles que não se conhecem a viajar. Silêncios que não têm geografias.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Austrália e um qualquer outro lugar

Olho pelo vidro do carro e a paisagem continua a passar. Não percebo como. Eu continuo parada. Passamos por um grupo de pessoas a rir, com cervejas numa mão e gestos soltos na outra. Não percebo como. Eu continuo parada. Hoje soube que morreu um amigo.

Foi há muitos anos. E a minha alma tinha morrido.
Era um nada. E dor. Tinha deixado de ser.
Foi quando percebi que me pegavam ao colo, que me levavam ao ombro, que me alternavam o peso numa caminhada impossível até um estádio que, para mim, tinha deixado de ser olímpico. Desconheciam que não me levavam inteira, cada um carregava apenas um estilhaço.

Saio do carro. Descalça. Piso a areia com força. Com força. Como se quisesse atravessar o mundo. Ouço os gritos de um grupo de adolescentes. Não percebo como. Eu continuo calada. Hoje soube que morreu um amigo.
Ando até molhar os pés. Por momentos esqueço-me que estou na Austrália. Não penso em tubarões nem em experiências de vida. Não me lembro. Não ouço. Não acredito. O mar parece-me muito maior. Quase impossível.

Foi há muitos anos. E a minha alma tinha morrido.
Carregavam-me quando era apenas estilhaços. E riram-se. Não sabiam que nesse momento davam sentido ao meu reinício.

Mergulho até não aguentar não respirar. Estou viva. E sei que a partir de hoje sou eu que carrego um estilhaço. De um amigo.
Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Havana


O silêncio vence.
Derruba perguntas, curiosidades, com uma força que ultrapassa o hábito. Os olhos baixam-se, quase tocam nos ombros, desviam-se naturalmente de quem os ouve.
Em quatro dias, o Bernardo foi o primeiro a falar. E foi aí que se abriu uma porta para um novo mundo.

As paredes são de um branco antigo, com a espessura da História. Sentámo-nos na única mesa, no centro da sala. Os três, isolados, como se fôssemos a própria ilha.
E falou. E descobriu. E perguntou.
Um mestrado sem canetas, sem papel, sem internet. Que estudava na Universidade. Sociologia. Que era voluntário. Que estava longe de casa. Que o filho era médico. E motorista. E barbeiro. Não, não queria comer. Só saber. E nós só ouvidos. De olhos a quererem chorar-nos.
E falámos. E descobrimos. E perguntámos.

Acabáramos de entrar no dilema.

Pela pequena janela via-se um pedaço de rua. As casas pareciam pintadas de fresco, de um azul puro cheio de sentido; as pessoas cantavam, abraçavam-se; as árvores estavam maiores, mais verdes, a preencherem de sombra os espaços quentes.
Despedimo-nos com um adeus incerto dentro das mãos. A rua estava deserta. E, à medida que evoluímos o passo, o silêncio passou a ser nosso.

Iniciar uma viagem, de um ano, por Cuba é como se uma suave violência me abrisse em dois. É tudo muito mais Tudo do que se imagina. Talvez um dia, de longe, muito mais longe, já sem tempo nos dedos, consiga escrever sobre a humanidade deste país. Histórias que, por enquanto, gritam demasiado alto para que se consigam ouvir.

Até lá, como me ensinou um amigo cubano:
- Bebamos uns Runs para que se acabem as penas!

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

A sair de Cuba

Pela primeira vez em 11 dias sinto-me com tempo. Não aquele tempo a que nos habituámos a chamar tempo, mas aquele que nos habita por baixo da pele. Que só é possível se quisermos que aconteça.
Agora sim. Sinto-me a começar. E Cuba é, sem querer, um segredo meu.
Imaginava-me uma pessoa informada. Sabia do Fidel, do Che, do embargo, da Revolução, das datas, do regime político, do racionamento. Que me pediriam roupa, canetas, sabão… Conheço-me. Sabia que Cuba me impressionaria. Afinal…
Não. Sabia. Nada. E talvez por isso o silêncio.
Sinto um orgulho enorme em ter estado em Cuba. Em ter partilhado os dias com o Bernardo, a Lola, o Ascânio, o David. Pessoas que nos ajudaram a ver o lado de dentro do mundo.
Ainda bem que temos um Blogue. Ainda bem que o Luís me convidou para contar histórias do mundo no Miniscente, sem qualquer regra ou obrigação. Ainda bem que somos dois. Ainda bem que estou aqui.

Texto: Clara Faria Piçarra

Nova Zelândia


Corre. Corre. Corre. Quer ter a certeza que o ar não é feito de papel. Acelera. Vê que as árvores quase terminam. Continua. Continua. Ignora a respiração a saltar-lhe do peito. Quer ter a certeza. Sabe que se aproxima, começa a apagar-se o caminho. Se for cenário. Se for cenário. Imagina o corpo contra a parede de cartão. De um azul a imitar o céu, um lago demasiado pintado, demasiado perfeito. Mais cinco passos. Guarda o fôlego. Dois, um. Fecha as mãos num resumo… E, de olhos abertos, cai no vazio.



Esvazia-se de si próprio. O sorriso sai-lhe pelos bolsos. A imaginação, o calor, o tempo. Tudo fora de si. Sente o espaço que se cria. O momento único do seu silêncio.

Vejo um ser enorme a andar na minha direcção. De pele a sobrar-lhe. Rugas encharcadas, como rios indecisos sobre a idade que têm.
- Estás surpreendida?
(Acho que sim)
- Por ver um velho correr para o precipício?
(Por estar do outro lado do mundo e tudo se passar ao contrário)
E por saber que um homem, para ter a certeza que não vive num lugar de brincar, corre até ao salto para não se sentir imortal.
Espero que a sua sombra se dilua nas montanhas.
… E começo a correr.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

Ushuaia - Fin del Mundo


“Demoras a chegar. Demoras a partir. Esta demora dá-te tempo para pensar.”
Diz-me o Gabriel, um homem mais velho do que a idade, numa voz que não interrompe o silêncio. Estamos na cidade com mais silêncio do mundo.
À nossa frente apenas Sul. Pintado com cores de brincar. Parece-me água, mas pode não ser. É demasiado azul, demasiado.

(Torno a abrir a carta enquanto frase soltas, fragmentos, se misturam com recordações)
Assistimos à luta das árvores, a crescerem contra o vento, contra as entranhas vazias da terra. Não contra o Homem. Esse preocupa-se em lutar com a sua imensidão.
Estamos sentados no chão, protegidos por uma árvore diagonal. E esmaga-me o tamanho do céu.

(Recordo o frio…)

“Morreria sem esta força a puxar-me para Sul, sem a tranquilidade dura deste lugar.”
Fala-me com as mãos. Há vida em cada gesto simples que me oferece.

(Releio apenas as últimas linhas:
Ushuaia, 25 de Outubro de 2010
Gabriel)

Guardo de novo a carta no envelope. Regresso sempre, mas ainda me lembro da primeira vez que estive no fim do mundo. Quando pensava que a solidão estava só e que o fim não tinha continuação.
Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra