Buenos Aires


Só tem um medo: não conseguir acordar. Nunca dorme mais de duas horas e bem encostadas à força do dia para que se sinta sempre a amanhecer.
Na noite anterior tocou como nunca. Saía-lhe música por cada poro. Foi canção, vida, poema.
(por que chorava ela?)
Olha para o espelho. Passa a mão pela barba, como se a agressividade dos pêlos lhe garantisse estar acordado. Não consegue deixar de sentir culpa sempre que tem noites assim. Sabe que a cada movimento de braços rouba um pedaço de alma ao público. Agarram-se às cadeiras, prendem-se ao chão, recordam, sorriem.
(por que chorava ela?)
Mas não consegue parar. Nesses momentos toda a cidade se resume ao seu corpo. Luz, arte, movimento, literatura. Toca a decadência. Toca o desejo. Toca para não largar a noite.
Enche de gente cada intervalo seu.
(por que chorava ela?)
Abre a porta de casa. E recomeça.


As luzes acendem-se no preciso instante em que a música acontece.
Uma dor aguda invade-me como se me roubassem lentamente pedaços de passado.
(por que choro?)
A minha alma salta para o palco. Sai-me por cada poro. Transformo-me em canção, vida, poema. Sinto a cidade como se sempre tivesse sido minha. Uma dança sofrida de arte, luz, movimento, literatura.
(por que choro?)
Sou apenas aquele momento. Nenhum gesto é exagero. Nenhum som ultrapassa a música. Nada acontece fora de mim.
Choro por saber que nessa noite amanheci.

Texto e Fotografia: Clara Faria Piçarra

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